28.9.11

Mundo das trevas

Era seu primeiro baile e parecia que esperara por ele por uma eternidade. Finalmente seria apresentada à sociedade. Seria reconhecida e poderia então adentrar no glamoroso mundo que a esperava, com festas, fofocas, alta costura, contatos, brilho e tudo mais que o dinheiro poderia oferecer. Isso sem contar as novas companhias. 

Escolhera cuidadosamente sua vestimenta: um vestido de seda, saia rodada, laços e brilhos, tudo em tons dourados. Nos braços levava ornamentos do mesmo tom, e nos cabelos apenas pontos de luz. As luvas de renda conferiam um toque pueril ao conjunto. Mas a máscara escolhida era tipicamente de Veneza, bela e comum.

No caminho para a mansão onde seria o baile, pensou em todo o caminho que a levara até ali: estudara infinitas horas, trabalhara as restantes e dormira apenas quando desmaiava de cansaço. Fizera muitos favores, conseguira coisas impossíveis, foi ludibriada e enganada diversas vezes, derrubaram-na incontáveis outras, mas sempre mantivera a meta de entrar naquela sociedade, e finalmente conseguira.

A mansão era uma construção imponente: três andares de pouco mármore e muito vidro, tanto que levava o nome de “Castelo de Cristal”. As luzes não permitiam que os convidados fossem vistos de fora do local, o que permitia verem sem serem vistos. Um leve arrepio passou pela espinha da garota quando saiu para o ar da noite e contemplava o castelo, mas creditou tal sensação ao vento.

Tudo se passava como em um sonho: dois empregados abriram as portas duplas, e o esplendoroso e iluminado salão apareceu para seus olhos. Casais dançavam, vinho era servido e muitos riam alegremente. 

A anfitriã encontrou-a e foi cumprimentá-la. Apresentou-a diversas pessoas; relacionou-a com diversos contatos; ofereceu-lhe deliciosos vinhos. Mas era com os perfumes caros e o ar de poder com os quais se inebriava. 

Foi levada até a janela pela anfitriã, que mostrou quão grande era o terreno, mas também fazia troça dos que trabalhavam para ela. Dissera serem pequenos como formigas, trabalhadores honestos. Impregnara todo desprezo que era possível nas últimas palavras, causando embaraço na garota. A mulher continuou, sem notar os sentimentos da convidada, rindo enquanto contava histórias que eram para ela engraçadas e patéticas, mas só demonstravam a boa índole dos trabalhadores.

Então o relógio ressoou, era hora de tirarem as máscaras para a dança da meia-noite. A anfitriã virou-se e foi a primeira a mostrar seu rosto, mas a garota continuava a olhar para fora, a observar e a pensar no que a mulher dissera. Ouviu a chamarem e pareceu acordar de um transe. A mulher a olhava, sorridente. O rosto dela era de uma beleza irretocável que acabou por fascinar ainda mais a garota. Dirigiu um último olhar à janela, mas algo chamou sua atenção. Parecia um efeito de sombra, mas quando prestou atenção, não pode evitar que calafrios percorressem o corpo. Tentou gritar, mas o som morreu na garganta quando o medo tomou conta.

O reflexo da anfitriã estava... diferente. O rosto, tão luminoso, era de um cinza doentio no reflexo. Era extremamente enrugado e seco, e em alguns lugares até despedaçava, revelando uma gosma de tom esverdeado que grudava os pedaços do rosto. Havia saliências por todos os lados. Abaixo dos olhos, marcas fundas e arroxeadas rodeavam os olhos eram leitosos, pequenos e tão malignos que ela teve que desviar o olhar. A cabeça não tinha cabelos, mas sim poucos e ralos tufos, e era coberta de manchas amareladas. Seu corpo tinha profundas marcas de ferimentos, expondo a gosma seca por debaixo da carne. Havia também marcas de dedos, mãos e arranhões, como se tivessem pressionado por tanto tempo, ou a ele se tivessem agarrado. Não sabia dizer se fora por prazer ou se era um sinal de luta para escapar dela. Mas o pior eram os dentes. A boca antes carnuda da mulher não passava de uma linha sem nenhum atrativo, que deixava a mostra os dentes pontiagudos como de um tubarão. Voltou a forçar o olhar para os olhos da mulher, e sentiu-se como sua próxima presa.

Desviou o olhar daquele reflexo, mas ao olhar o rosto da mulher, não conseguia mais não ver o que vira. Olhava-a com a boca escancarada de pavor, a cor fugia-lhe do rosto e seu corpo tremia. A mulher esboçou preocupação e tentou tocá-la, mas tudo o que viu foi a bocarra abrir um sorriso malévolo e garras tentando roçá-la. Virou-se para fugir, procurando a porta, mas enquanto perscrutava o salão via, a cada máscara que caía, um rosto pior que o anterior, e todos pareciam olhá-la, pareciam querer devorá-la.

Foi então que sentiu o maior medo. Todos os convidados, sem exceção, eram monstruosos. E ela era convidada. Voltou a virar para o reflexo e tirou sua máscara. Havia, sim, um pequeno racho em sua feição, mas não era nem de longe a forma distorcida dos outros. Teria a alma começado a rachar? Ou seria outra coisa? Talvez houvesse salvação. Talvez.

A dança recomeçou e ela se impulsionou para sair dali. Os demônios dançavam e o baile macabro tomava forma. Agora que enxergava, via que os criados eram brancos e transparentes como fantasmas, quase imperceptíveis. O vinho tornara-se tão espesso quanto sangue, se é que não o era realmente. Enquanto via todo o conto de fadas transformar-se em uma medonha realidade e se dirigia às portas, percebeu que seus passos eram mais lentos. O vestido, de dourado tão resplendoroso, lhe pesava como se todo o ouro a impedisse de andar. Seus adornos pareciam grilhões que tilintavam junto à música lúgubre, cantada por gritos enraivecidos e de dor. Os demônios riam-se dela, do esforço que fazia para tentar sair, quase rastejando no chão. O vestido a queimava, e não tinha forças para tirá-lo.

Então viu seu patético reflexo no espelho. O ouro de seu vestido parecia fazer um incorpóreo caminho para as mãos daqueles que a haviam tocado, e eles seguravam bem.  Pequenas manchas roxo-acinzentadas surgiram nas partes do corpo que tiveram contato com os convidados e dobravam de tamanho a cada piscar de olhos. Sentia um frio profundo no corpo e começou a tremer e logo constatou que seu sangue estava esvaindo, sendo substituído por algum líquido gelado. A pele começou a rachar, e ela tentava desesperadamente chegar à porta. 

Mas alguém a puxou com força e a máscara caiu do rosto e rolou para o chão. O último vislumbre que o corpo já sem forças permitiu antes da vista turvar-se foram as portas se fechando.

2 comentários:

Histórias de castelo são -sempre- as melhores!

Eu já tive um sonho parecido com esse, mas não era num baile e sim na escola =p

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