22.12.11

Pedaços



Ele sabia que aquilo era errado, mas não pensou em voltar atrás. A casa na colina parecia abandonada e seria difícil alguém lá habitar. Mas, como manda o clichê, ela era, e por um ser fascinante.

Adentrou por uma fenda entre o chão e o portão, esgueirando-se para uma janela que ele deixara aberta na noite anterior quando a casa recepcionara uma festa, como sempre. Todos eram convidados, como sempre. E o anfitrião ficava um pouco apagado, como sempre.

A casa estava escura e vazia. Ou assim ele esperava. Silencioso, entrou pela janela no corredor. Sabia que não haveria perigo, pois apesar de morar com outros na casa, elas nunca estavam lá. ELE sempre falava isso. Mas ELE falava muita coisa.

Apesar de sempre ficar no canto em suas próprias festas, falava com todos e invariavelmente chamava atenção para seus comentários desconexos e facetas exageradas.

Subiu as escadas, sabia que o que queria estava no sótão. No caminho, encontrou um artefato curioso: uma ampulheta. Era curioso porque ELE dizia ter medo daquele objeto simplesmente porque representava a passagem do tempo e, portanto, a morte. Apesar disso, não tinha nada contra relógios.

Na ponta dos pés, subiu a escada, lembrando que ELE uma vez dissera que tinha algo no sótão que era único e, por isso mesmo, não podia mostrar a ninguém ou seria cobiçado. Chamava-o de “segredo”. A curiosidade o levou até ali. Achava que a esquisitice dELE revolveria em torno do tal “algo”. 

O anfitrião sempre fora esquisito: tinha manias estranhas: usava coisas não-usuais como acessórios (um telefone como fone de ouvido); dizia ser incapaz de sentir cheiros, mas uma vez deixou escapar que amava o cheiro de cookies; utilizava de drama para as coisas mais pequenas (fingia um medo colossal de joaninhas). Acreditava que a vida era uma fantasia sem fim, ora agindo como se pertencesse à terra média, ora à máfia. Todos aspectos devidamente copiados ou referentes à alguém ou à alguma coisa.   

O silêncio em volta tornava as coisas um pouco assustadoras. Normalmente, quando havia festas, o barulho de conversas e música era intenso, principalmente quando havia jogos para o entretenimento. Agora o mínimo esforço para se locomover era graciosamente abafado pelo carpete, mas ainda assim fazia a madeira ranger. Mas nenhum som podia abafar o vazio daquela casa. 

Chegou finalmente à porta do sótão a testou. Não estava trancada, por isso adentrou, ainda cuidadoso. A sala estava escura e empoeirada, com alguns móveis cobertos por panos brancos e gastos. A lua banhava a sala, sendo sua única fonte de luz, e era refletida por algo grande e semi-coberto, em um espaço mais aberto, perto da janela. Reparou que o chão naquele espaço não era tão sujo.

Aproximou-se e prendeu o fôlego enquanto retirava o tecido que cobria o objeto, rápido mas cauteloso. Era um espelho de vidro escuro, com moldura dourada e ornamentado com arabescos prateados. Era maior que um homem, e belíssimo. Havia pequenas inscrições no vidro, mas não conseguia ler. 

Chegou mais perto e estacou. Ouviu um barulho ali, alto o suficiente para não ser um rato nem fruto de sua imaginação. Mas não podia ter certeza, nem podia desistir agora. Virou-se afobado para ler, mas ainda não compreendia. Ouviu o ranger da madeira perto de si. Eram passos, sem dúvida, mas não pareciam tão humanos. Não se atreveu a olhar para trás. Leu finalmente a inscrição:

Você – Pedaços -- Eu

Confuso, reparou em uma sombra no canto do espelho que não estava lá. Com a barriga dando voltas, virou-se assustado, pronto para se defender. Mas não havia uma pessoa lá. Só um manequim, cheio de conhecidos retalhos. Era ELE.


1 comentários:

Que delícia de texto... E é isso mesmo, somos feitos de pedaços, de retalhos que cada um que passa por nossa vida vai pregando em nós...
Se eu pudesse, neste caso, iria brincar com a ampulheta, iria brincar com o tempo e fazê-lo passar de acordo com meus sonhos, de acordo com o tempo do meu bem-querer...
Amei, simplesmente...

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