Ao entrar na bicicletaria Ciclo Siromar, é possível
encontrar dezenas de peças de bicicletas, devidamente agrupadas entre suas
iguais. Há também vários modelos de bicicletas, completamente montadas,
aguardando o momento que irão ser consertadas. Muitas têm cores diferentes, mas
todas têm a mesma característica em comum: um brilho que só iguala o dos olhos
do dono do local, Sidnei Roberto Martins, de 50 anos.
É nítida a paixão que ele tem pelo que antes era um hobby:
peças que chegam cobertas de ferrugem saem mais brilhantes do que se fossem
novas, como se recebessem uma segunda chance. Dentre todas as bicicletas
expostas, uma chama muita atenção: um modelo antigo vermelho com detalhes em
branco, dependurada do teto. Trata-se de uma Caloi Berlineta, modelo de 1973,
completamente restaurada e que foi responsável por inspirar Sidnei a iniciar um
novo tipo de serviço na bicicletaria: o de restauração.
“O trabalho é realizado por mim e mais dois amigos, já que é
manual, demanda muito tempo e assim terminamos mais rápido, uma pessoa só não
consegue fazer. Também há algumas partes que terceirizamos como o cromo, o
torno e algumas vezes a pintura”, revela.
Sidnei conta que o primeiro serviço de restauração foi
realizado em 2007, e com a propaganda boca-a-boca, outros serviços foram
surgindo. Hoje, são dez bicicletas que aguardam na fila de espera, já que cada
uma demora cerca de três meses para voltar a ser como era.
“A faixa etária das pessoas que querem a restauração varia
entre 40 até 70 anos. São pessoas que quando crianças tinham as bicicletas,
lembram de como era a época, e trazem aqui para eu restaurar. Muitos levam pra
exposições depois, ou pra algum evento, ou só guardam como relíquia. Apesar de
que elas saem funcionando! Mas eles não querem desgastá-las”, afirma.
A paixão por bicicletas começou na infância. Sidnei nasceu
em Campinas e sempre morou no bairro Jardim Aurélia, que antes era uma fazenda.
Morava com o pai, que trabalhava na Fepasa, com a mãe e com a irmã mais nova.
As brincadeiras da época eram queimar pasto (“Que hoje é contra a lei e seria
enquadrado pelo IBAMA” diz Sidnei, rindo), as brincadeiras de rua, como soldado
contra ladrão, guerra de estilingue de mamona, ou brinquedos que as crianças
construíam. Sidnei conta que era comum ter um carrinho de lata de óleo, com
cabo de vassoura e rodinhas, que depois de pintado nada tinham de diferente na
imaginação dos pequenos do que um hoje comprado em lojas.
“Bicicleta era um meio de transporte de adultos na época,
não um brinquedo para crianças. Era um sonho de consumo nos anos 60, ainda mais
para filhos de operários, já que custava muito caro, precisava de doze salários
mínimos para comprar uma bicicleta”, conta Sidnei. Era tão cara que as lojas
parcelavam em até 36 vezes. Em comparação com os tempos atuais, seria o mesmo
preço de uma moto simples.
O primeiro contato com a Berlineta foi ao fim dos anos 70,
quando tinha oito anos. “O Pelé era garoto propaganda, então saia em todos os
jornais, na televisão”, lembra. Um colega de infância, que morava no mesmo
bairro, teve o pai demitido. Com a indenização que recebeu, comprou a bicicleta
para o garoto, e logo os meninos faziam fila para andar, e eram selecionados
entre cinco e seis por dia.
Quando andou pela primeira vez na bicicleta, Sidnei sentiu
uma nova sensação: a de liberdade, sobre duas rodas. O vento batia em seu rosto
enquanto ele tentava se equilibrar. Mas valia a pena: a emoção e o novo prazer
eram únicos.
Muito tempo se passou até que ele comprasse uma bicicleta. Seguindo
os passos do pai, Sidnei fez um curso no SENAI, que garantiu sua entrada na
ferrovia aos 14 anos, como eletricista de locomotiva. “Era o sonho de um pai
colocar o filho lá, existia até o incentivo da empresa, eles tinham um SENAI
interno que tinha preferência por filhos de ferroviários. Era o que hoje é
entrar em uma faculdade renomada, federal. Quem possuía colégio técnico não
precisava fazer faculdade nos anos 70, tinha a carreira paralela à de um
engenheiro”, relata.
Na década de 1990, foi lançada a mountain bike no Brasil, que logo chamou a atenção de Sidnei. Mas o
país tinha altos índices de inflação e para conseguir comprar a bicicleta, fez
um consórcio com dez amigos da Fepasa. Sidnei administrava um grupo de dez
pessoas e cobrava 10% a mais para ter dinheiro para comprar a magrela. Dentro
da empresa, logo surgiu oito grupos com dez pessoas, totalizando 80 bicicletas,
número que continuou a crescer. Logo, o hobby de fazer manutenção de bicicletas
virou algo necessário, e após 30 anos na Fepasa, Sidnei, que agora era técnico
de recebimento de materiais, se demitiu e abriu seu próprio negócio, em 1992.
A bicicletaria Siromar foi assim batizada pela junção das
sílabas do nome de Sidnei (Sidnei Roberto) e de sua esposa, Marlene. Um dia
comum trouxe à Sidnei a presença de um colega ferroviário, com quem trabalhara
por 20 anos. Informou que tinha uma bicicleta antiga pra vender e perguntou se
ele gostaria de adquirir. Foi assim, totalmente por acaso, que Sidnei adquiriu
seu sonho de infância, por meros 60 reais.
“Foi como algo que você não está esperando e acontece, que
era exatamente o que você queria. É uma sensação única, como a de um pescador
que quer muito pescar um tipo de peixe, que não tem esperança, mas consegue. E
quando consegue, nem acredita”, conta.
O trabalho de restauração demanda tempo, e é realizado
paralelamente ao trabalho normal da oficina. Para a revitalização ser possível,
a bicicleta precisa ser original, ou ter entre 80% e 90% das peças originais,
ou seja, não pode ser somente o esqueleto. Algumas partes, inclusive, Sidnei já
teve que importar. Em outros casos, ele procura vários modelos daquela
bicicleta em busca de peças. “É um procedimento de garimpagem”, brinca.
Depois de recebida, a bicicleta é desmontada, e cada parte é
trabalhada individualmente, com esmero. Primeiro Sidnei procura referências antigas
para remontar, como fotos ou outros modelos parecidos, já que até os mínimos
detalhes, como adesivos, são restaurados. Para esses pequenos cuidados, Sidnei
tira um tempo para tudo sair à perfeição. “Normalmente trabalho restaurando no
horário comercial, junto com os outros afazeres da loja. Mas muitos detalhes
exigem mais atenção, então eu fecho a loja e fico meia hora, uma hora, cuidando
da restauração, ou mesmo fora do horário, mais à noite”, revela.
Os modelos preferidos dos clientes são as bicicletas de
marcas inglesas, como a Philips, que, de acordo com Sidnei “qualquer pessoa com
mais de 50 anos conhece. Era o fusca das bicicletas!”, afirma.
A paixão por mecânica é óbvia em Sidnei. É adepto a falar
gesticulando: “talvez seja pela descendência (os avós maternos eram italianos e
os paternos eram portugueses), ou porque eu trabalho com as mãos. Tem gente que
fala só com a boca, mas a mão é um sistema de comunicação também”, conta.
Entre seus outros hobbys, figuram os carros. Sidnei adora
miniaturas de carros antigos, e possui alguns modelos em sua sala, alguns dados
de presente por suas duas filhas. Mas também gosta de carros com motores
potentes, como o V8. Além disso, gosta de visitar exposições. “Quem tem
profissão manual acaba tendo um hobby desse tipo”.
Sidnei sabe que o desinteresse das crianças pelas magrelas
pode um dia acabar com seu negócio. “Hoje as crianças gostam de equipamentos
eletrônicos, computadores, Iphones, celulares”. Mas não são só as crianças que
adoram os eletrônicos. Sidnei conta que muitos clientes não conseguem se
comunicar pessoalmente com ele, tendo problemas para montar frases, mas que por
outro meio de comunicação, o eletrônico, se expressam bem.
Apesar disso, estima
que 80% das bicicletas infantis que recebe na loja são de garotas, número que é
invertido quando viram adolescentes. Sidnei acredita que pelas bicicletas das
garotas serem cor de rosa e terem personagens populares, têm um apelo maior. Já
na adolescência, os meninos gostam de fazer manobras, portanto comprariam mais.
Quando adultos, a situação equilibra-se. “O uso de bicicleta como meio de
transporte é mais no interior, em metrópoles não tem como, só se a
administração pública incentivasse, com integração dos outros serviços de
transporte público. Hoje, a bicicleta é mais utilizada como lazer”, conta.
Sidnei conta que as ciclofaixas recentemente espalhadas por
Campinas ajudaram a aquecer o setor, mesmo só sendo utilizadas nos fins-de-semana,
pois incentivam quem guarda a bicicleta na garagem, traz pra fazer uma
checagem. Já aqueles que utilizam no dia-a-dia enfrentam problemas como a falta
de estacionamento em shoppings e supermercados. “O Unimart e o Enxuto são
próximos de casa, e muitos ciclistas pedem para deixar as bicicletas aqui,
senão têm que amarrar na rua, sem segurança nenhuma. Eles reclamam pra mim
sobre isso frequentemente”.
Mas não são só ciclistas que reclamam que vão à bicicletaria
conversar. Muitos saudosistas entram na loja e contam dos tempos em que eram
crianças, comentando sobre bicicletas, contando histórias e mostrando
cicatrizes, falando por um tempo que pode se estender a até duas horas,
lembrando de tempos que não voltam, mas que Sidnei pode trazer de volta, nem que
seja um pequeno vislumbre, como o fugaz tempo no qual o vento bate no rosto de
um garoto que sobe na bicicleta pela primeira vez.