Sonhos
de uma terra sonâmbula
“Se dizia
daquela terra que era sonâmbula”. A crença dos habitantes da região de
Matimati, onde se passa boa parte da história, serve de abertura para “Terra
Sonâmbula”, de Mia Couto. A terra se moveria para alcançar os sonhos dos
homens, que quando acordam, encontram nova paisagem. Seria essa a vontade então
dos personagens do livro, encontrar uma nova paisagem quando acordassem, e não
os resquícios de uma guerra.
A história se
passa em momento indeterminado da guerra civil de Moçambique. Muidinga, um
menino, e Tuahir, um velho, são dois exilados da guerra, que fogem sobre o
pretexto de encontrar os pais do garoto. Chegam a uma estrada com uma paisagem
desolada e cinzenta e encontram um machimbombo (ônibus) queimado, com diversos
cadáveres dentro, e um na estrada morto a tiros, que possui alguns cadernos.
Tais memórias foram escritas por um homem de nome Kindzu, que relata sua vida
durante a guerra, e sua busca em se tornar um guerreiro e encontrar Gaspar, o
filho de sua amada.
Fica então a
grande dúvida que guia o leitor até o fim: seria Muidinga esse garoto? Afinal,
ele não tem memória de quem é até ser encontrado por Tuahir, que também não
sabe sua procedência. Há várias pistas ao longo do livro, mas há um porém:
Gaspar não é o único garoto que desaparece, há também o irmão de Kindzu,e há a
possibilidade dele não ser nenhum dos dois, uma vez que a guerra faz diversos
órfãos.
A narrativa
começa apresentando os dois personagens e lançando um olhar introspectivo para
eles. No início, não parecem demonstrar afeição um com o outro, o que muda
durante o livro. A busca pelos pais do
garoto esconde a verdadeira intenção dos dois: a fuga da morte e a necessidade
de companhia, de família, brilhantemente descrita quando os dois fingem ser pai
e filho.
O livro segue
duas ordens cronológicas, presente, representado pelo garoto e pelo velho, e
passado, através das memórias contidas nos cadernos de Kindzu. A percepção da
troca desses tempos se dá pelo nome do capítulo, que pode indicar qual caderno
Muidinga lê, ou a ação que passa no presente, há paralelo entre as histórias, e
por vezes, a realidade se mistura ao passado dos cadernos.
O escritor
moçambicano Mia Couto escreve o romance utilizando-se de linguagem poética, com
diversas metáforas e neologismos, devidamente explicados entre parênteses.
Cenas que poderiam ser descritas objetivamente em poucas linhas ganham um olhar
diferenciado que se estende por parágrafos. As crenças e tradições do povo
transbordam no livro, é um contato profundo com uma cultura diferente. Há clara
influência do autor Gabriel García Márquez, principalmente do livro “Cem anos
de Solidão”, que também se utiliza de cenas fantasiosas e tradições locais para
construir a narrativa.
O autor escreveu
o romance durante a guerra civil moçambicana, que durou dezesseis anos e deixou
mais de um milhão de mortos. O livro todo é uma crítica à guerra e às pessoas
que não querem lembrar o que aconteceu. Em uma entrevista, Couto afirmou que as
pessoas pareciam sofrer de uma “amnésia coletiva”, que não queriam voltar
aquele período de cinzas. Esse mesmo cenário onde Muidinga, desmemoriado, se
encontra no começo da narrativa. Conforme o garoto lê os cadernos, toma
conhecimento da guerra, da história, a estrada muda, fica mais colorida, se
torna menos desolada, significando que o porquê daquela guerra precisa ser
conhecido, para não restarem somente as cinzas de herança.
Há críticas
também aos que começaram a guerra, as pessoas “que perderam seus privilégios”,
como dito no livro. As passagens mais elucidativas e críticas são a comparação
da terra com uma baleia atracada as areias da praia, que nem morreu e diversas
pessoas vão atacá-la para conseguir o maior pedaço que conseguirem, e a parte
do último sonho, que um habitante afirma que a guerra os transformou em animais,
colocando irmãos contra irmãos, e que serviu não para tirar as pessoas do país,
mas o país delas.
Os leitores
que desejam finais abertos à interpretação têm um prato cheio. Na história não
há o final certo de nenhum dos personagens, assim como não há final certo para
os que morreram e sobreviveram à guerra.
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