27.7.12

Crítica Literária: Terra Sonâmbula

Sonhos de uma terra sonâmbula
           
“Se dizia daquela terra que era sonâmbula”. A crença dos habitantes da região de Matimati, onde se passa boa parte da história, serve de abertura para “Terra Sonâmbula”, de Mia Couto. A terra se moveria para alcançar os sonhos dos homens, que quando acordam, encontram nova paisagem. Seria essa a vontade então dos personagens do livro, encontrar uma nova paisagem quando acordassem, e não os resquícios de uma guerra.

A história se passa em momento indeterminado da guerra civil de Moçambique. Muidinga, um menino, e Tuahir, um velho, são dois exilados da guerra, que fogem sobre o pretexto de encontrar os pais do garoto. Chegam a uma estrada com uma paisagem desolada e cinzenta e encontram um machimbombo (ônibus) queimado, com diversos cadáveres dentro, e um na estrada morto a tiros, que possui alguns cadernos. Tais memórias foram escritas por um homem de nome Kindzu, que relata sua vida durante a guerra, e sua busca em se tornar um guerreiro e encontrar Gaspar, o filho de sua amada.

Fica então a grande dúvida que guia o leitor até o fim: seria Muidinga esse garoto? Afinal, ele não tem memória de quem é até ser encontrado por Tuahir, que também não sabe sua procedência. Há várias pistas ao longo do livro, mas há um porém: Gaspar não é o único garoto que desaparece, há também o irmão de Kindzu,e há a possibilidade dele não ser nenhum dos dois, uma vez que a guerra faz diversos órfãos.

A narrativa começa apresentando os dois personagens e lançando um olhar introspectivo para eles. No início, não parecem demonstrar afeição um com o outro, o que muda durante o livro.  A busca pelos pais do garoto esconde a verdadeira intenção dos dois: a fuga da morte e a necessidade de companhia, de família, brilhantemente descrita quando os dois fingem ser pai e filho.

O livro segue duas ordens cronológicas, presente, representado pelo garoto e pelo velho, e passado, através das memórias contidas nos cadernos de Kindzu. A percepção da troca desses tempos se dá pelo nome do capítulo, que pode indicar qual caderno Muidinga lê, ou a ação que passa no presente, há paralelo entre as histórias, e por vezes, a realidade se mistura ao passado dos cadernos.

O escritor moçambicano Mia Couto escreve o romance utilizando-se de linguagem poética, com diversas metáforas e neologismos, devidamente explicados entre parênteses. Cenas que poderiam ser descritas objetivamente em poucas linhas ganham um olhar diferenciado que se estende por parágrafos. As crenças e tradições do povo transbordam no livro, é um contato profundo com uma cultura diferente. Há clara influência do autor Gabriel García Márquez, principalmente do livro “Cem anos de Solidão”, que também se utiliza de cenas fantasiosas e tradições locais para construir a narrativa.

O autor escreveu o romance durante a guerra civil moçambicana, que durou dezesseis anos e deixou mais de um milhão de mortos. O livro todo é uma crítica à guerra e às pessoas que não querem lembrar o que aconteceu. Em uma entrevista, Couto afirmou que as pessoas pareciam sofrer de uma “amnésia coletiva”, que não queriam voltar aquele período de cinzas. Esse mesmo cenário onde Muidinga, desmemoriado, se encontra no começo da narrativa. Conforme o garoto lê os cadernos, toma conhecimento da guerra, da história, a estrada muda, fica mais colorida, se torna menos desolada, significando que o porquê daquela guerra precisa ser conhecido, para não restarem somente as cinzas de herança. 

Há críticas também aos que começaram a guerra, as pessoas “que perderam seus privilégios”, como dito no livro. As passagens mais elucidativas e críticas são a comparação da terra com uma baleia atracada as areias da praia, que nem morreu e diversas pessoas vão atacá-la para conseguir o maior pedaço que conseguirem, e a parte do último sonho, que um habitante afirma que a guerra os transformou em animais, colocando irmãos contra irmãos, e que serviu não para tirar as pessoas do país, mas o país delas.

Os leitores que desejam finais abertos à interpretação têm um prato cheio. Na história não há o final certo de nenhum dos personagens, assim como não há final certo para os que morreram e sobreviveram à guerra.

0 comentários:

Postar um comentário