6.8.11

Desapego

Eram dois cavalos. Um negro como a noite e que trazia nos olhos o brilho insano das estrelas, chamado Opala. O outro era tão branco quanto os flocos de neve que encobriam o campo em que viviam e que encontrava no vento a mais bela melodia, chamado Lira.

Conheceram-se quando eram potros, assim como vários outros. Logo caminhavam pelos mesmos caminhos, na mesma direção. Os cascos batiam no já familiar chão endurecido pelo inverno que sempre cobrira aquele mundo. Nascidos no gelo, a ele estavam acostumados.

Não que não houvesse tempos verdes e floridos. Existiam sim, mas eram escassos. Tanto que muitos acreditavam que eram momentos especiais e internos, nos quais cada um imaginava seu próprio campo de gramíneos, mas que não alterava a realidade.
 
Nesse estranho mundo os potros cresceram e continuaram próximos, mesmo quando distantes, afinal, a direção que seguiam para explorar era a mesma. Perderam contato com outros cavalos que foram para outros lugares, outros passavam pelo mesmo campo esporadicamente, e encontraram novas companhias pelo caminho. Invariavelmente, havia obstáculos, e com ajuda, todos saltavam.

Um dia, em meio às andanças, encontraram um estranho campo. Havia enormes cercas de espinhos em volta de um vasto terreno, tão altas quanto árvores antigas, mas que deixavam entrever o que havia por trás e ofuscava tudo mais: um belo campo verde, como aqueles das supostas variações de humor.


Os cavalos maravilharam-se. Compartilhar tal visão era possível, porém, não durava muito. Portanto, observaram e constataram depois de horas que não era uma miragem. Outros cavalos apareceram do outro lado da cerca. Passaram com muita dificuldade pela cerca e convidaram os dois para adentrar o local. Falaram que era só passar pelos espinhos, que o campo era sempre verde e aberto a quem quisesse desfrutar, e deixasse alguns humanos montarem esporadicamente.

Opala ficou notoriamente entusiasmado, seus olhos brilhavam ardentemente. Pela aparência selvagem dos outros, era fácil entender o porquê. Lira continuou receosa, principalmente pelos espinhos, que deixaram marcas nos outros, além de achar que algo bom não viria com um preço tão baixo. Decidiu não entrar, afirmando seus motivos para o amigo, e pediu que também não entrasse. Ele não ouviu e disse que só iria conhecer, e foi.

Começou a entrar nos espinhos lentamente, rasgando a carne, em alguns pontos superficialmente e em outros pontos um pouco mais fundo. Chegou ao outro lado, relinchou e saiu galopando. Lira observou.

A rotina se repetiu. Opala ia constantemente ao campo verde e trazia marcas bem visíveis no corpo. Aparentemente, o local proporcionava uma sensação relaxante. Algumas vezes um caubói o montava, mas eram poucas. Nunca usara rédea. Mas sentia cada vez mais vontade de voltar lá, e assim o fez.

O cavalo preto voltava cada vez com uma aparência sutilmente pior. Tanto que ele não percebia – ou não queria ver. Mas o cavalo branco via, e pedia que ele não voltasse ao campo, mas era ignorado. Opala mentia cada vez mais para ter o que havia se tornado um prazer “proibido”, e quanto mais era proibido, mais queria.

Com isso, via Lira cada vez menos. Esta passou por dificuldades, e quando encontrou o amigo, respondeu que estava mal. Porém, a resposta foi ignorada pelo outro, que começou outro assunto qualquer que o interessava. Banalidades.

O cavalo branco magoou-se, mas insistiu inutilmente. Via seu amigo se perder e emaranhar em espinhos, cada vez mais fraco e ferido, e não podia fazer nada, não podia ajudar quem não queria ser ajudado. Então, para prevenir sua dor, se afastou.

 
 
 

Algum tempo depois, voltaram a se encontrar. Lira mal reconheceu o outro. Da robustez antes ostentada, só havia a sombra de outrora: a carne colava aos ossos. Seu rosto murchara e agora tinha rédeas, seguradas com firmeza por um caubói vestido de vermelho. Mas o pior não era ser escravo de alguém. O pior era que seus olhos estavam opacos.



Ele avistou o cavalo branco e parou em frente dele. Os dois se encararam por um tempo. Opala contou que achava que podia entrar e sair quando quisesse do campo, mas que cada vez mais sentia necessidade de estar lá, e cada vez mais era dominado pelos homens. Seus olhos mostravam a dor que ele passava, a tristeza que sentia pela liberdade tomada. Ele parecia pedir ajuda. Lira não se compadeceu, dizendo que o cavalo preto havia feito uma escolha. Virou-se e foi embora.




Mais um tempo se passou. O inverno chegara e trazia ventos fortes e nevascas. Correndo pelo mundo com um companheiro, Lira acabou por ver algo no chão. Aproximando-se, encontrou um cavalo morto, coberto por um pouco de neve. Reconheceu Opala de imediato. Achou estranho, pois se encontravam um pouco longe do campo verde. Apesar dos cortes profundos e das imensas cicatrizes, da magreza excessiva e da odiosa rédea, da crina rala, era ele. Seus olhos estavam abertos e novamente brilhavam. Reencontrara a liberdade.

O companheiro de Lira perguntou se aquele era um amigo dela.
Ao que ela respondeu:
“Não”

3 comentários:

Não sei explicar... Toda vez que visito sua página eu TENHO que ler novamente, de novo e mais uma vez esse lindo texto!
Me sinto seduzida pelos personagens da história, e com eles me pego a imaginar uma outra vivência... Achei que iria gostar de saber que existe uma leitora que aprecia MUITO cada imagem desta história! Nunca a tire daqui, ok?! =)

Não tirarei não, ela significou bastante para mim.

igual o meu cavalo e o da minha irma o meu so vai onde o da minha irma vai o meu e um preto e da minha irma e um branco

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